Valério Arcary
"Ouça um bom conselho, que eu lhe dou de graça, inútil dormir, que a dor não passa" (Chico Buarque).
A greve dos professores da Rede Estadual do Estado de São Paulo tem 21 dias, e já está próxima de finalizar a sua terceira semana. Utilizando uma astúcia desonesta, Alckmin insiste em ignorar a realidade, e afirma que não há greve. Se fosse verdade, como é possível explicar que dezenas de milhares de professores tenham protestado nas ruas, estimados em 60 mil pela Apeoesp, no passado dia 2 de abril?
Qualquer um sabe que são muito raras greves com 100% de adesão. Em uma categoria como a dos professores, com mais de 230 mil educadores, a adesão a qualquer greve é sempre parcial.[1] A questão, portanto, é o que se entende por parcial. Quando a adesão se aproxima de 150 mil professores, pelo menos nos dias de assembleia e manifestação, a greve é poderosíssima.
As greves de professores, assim como as greves em serviços como saúde, segurança e transporte dividem as opiniões, mesmo entre os trabalhadores, mais do que as greves de outras categorias. É previsível que seja assim, porque nas atividades de serviços se atende a demandas humanas que são direitos universais, e não com produtos. Em educação se trabalha com crianças e jovens.
Os argumentos mais frequentes contra as greves de professores são bem conhecidos, porque repetidos à exaustão nas televisões e rádios. Não obstante, vale a pena examiná-los, até porque que é muito raro que haja a oportunidade de respondê-los nas mesmas mídias. Refutaremos os nove mais comuns:
- Aqueles que não estão satisfeitos deveriam procurar outra profissão.
Não é surpresa alguma que a profissão está socialmente desvalorizada pelos baixos salários, logo quem escolheu ser educador não deveria reclamar. Esta crítica, muito comum em ambientes de classe média é, entre todas, especialmente, cruel. Esta visão do problema escamoteia a mais simples das questões: professores são professores porque gostam de ensinar, e não é justo ou sequer razoável que recebam abaixo do salário médio, se têm escolaridade igual ao dobro da média. Por trás dela existe um pressuposto meritocrático oculto: vivemos em uma sociedade, naturalmente, desigual, em que o lugar de qualquer um é proporcional aos seus talentos e capacidades. Portanto, quem decidiu trabalhar em educação, deve aceitar a sua condição ou ir embora. A rivalidade entre os homens e a disputa pela riqueza seriam um destino incontornável. Um impulso egoísta ou uma atitude comodista, uma ambição insaciável ou uma avareza incorrigível definiriam a nossa condição. Eis o fatalismo: o individualismo seria, finalmente, a essência da natureza humana. E a organização política e social deveria se adequar à imperfeição humana. E resignar-se. Resumindo e sendo brutal: o direito ao enriquecimento seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais corajosos e seus herdeiros.
- Greves são políticas, e exigem o impossível.
Este é o argumento mais banalizado e, também, mais infantil. Os que o usam querem dizer que o objetivo da greve é prejudicar a imagem do governador. O que é o “óbvio ululante”, porque é o governador o primeiro responsável pela educação pública na Rede Estadual. Mas admitir que a greve é política, porque é um conflito que tem por objetivo pressionar o governo a tomar medidas que ele não quer tomar, não autoriza concluir que ela obedeça a um projeto partidário eleitoral. Imaginar que mais de cem mil professores entraram em greve para ajudar um partido a vencer eleições daqui a quatro anos é, simplesmente, ridículo. Os professores paulistas estão em greve porque recebem salários infames, entre três e cinco salários mínimos, dependendo do tamanho de sua jornada e da sua titulação. Suas reivindicações não são nem exorbitantes, nem desmedidas. Pedem somente uma equivalência salarial que garanta isonomia com os salários daqueles que têm titulação igual.
- Greve não resolve nada.
Este argumento é o mais ignorante de todos, porque ignora a história, e estimula a acomodação. Infelizmente, não é incomum que seja esgrimido até por alguns colegas professores. Não há contratos individuais em educação, há contrato coletivo para toda a categoria. O que não resolve nada é a desmoralização individual.
- Seus direitos terminam onde começam os dos outros.
O direito dos alunos a ter aulas, o direito dos usuários de automóveis de ir e vir, o direito dos pais de alunos a terem uma programação de férias são todos direitos legítimos, mas não anulam, não diminuem, não proscrevem o direito, também legítimo, dos professores de fazer greve. Sim, direitos são relativos, portanto, não são absolutos. Mais importante, os direitos devem ser proporcionais aos deveres. O governo tem, por exemplo, o dever de oferecer educação pública de qualidade universal e gratuita. Mas ele pode preferir transferir os escassos recursos públicos para empreiteiras que fazem sobre preço nas obras de trens e metro, como denunciou a insuspeita porque fazia parte do cartel, Siemens. Pais de alunos, estudantes e, eventualmente, usuários de automóveis zangados podem se unir aos professores, ou ao governo que humilha os professores. Esta escolha não é somente política, é moral. Podem se unir aos explorados ou aos exploradores.
- Greves prejudicam inocentes, crianças e jovens.
Sim, greves prejudicam estudantes, mesmo quando há o compromisso de redução de danos através da reposição de aulas. Mas quem prejudica mais? O governo de São Paulo que mantém, por mais de trinta anos, uma política salarial de desmoralização social dos educadores, perpetuando dezenas de milhares de professores em condições de contratos precários para fazer economia de escala. Em um mundo perfeito, certamente, não seria necessário que os professores fizessem greve, mas o mundo é imperfeito e injusto. A hostilidade ao conflito social é um argumento reacionário. A luta contra a injustiça é legítima, porque é ela que pode diminuir a imperfeição do mundo.
- Deveriam protestar de outra forma.
Os professores já esgotaram todas as formas de luta possíveis e imagináveis. Fizeram manifestos, abaixo-assinados, passeatas, e até acampamentos. Os que desconsideram a intransigência do governo não compreendem que a desqualificação da educação pública abriu o caminho para educação privada no Brasil e, especialmente, em São Paulo. Educação particular passou a ser um grande negócio, capaz de atrair investimentos estrangeiros em escala de centenas de milhões de dólares, com a cumplicidade dos governos.
- A Justiça devia resolver o conflito de interesses: deixem os tribunais decidir.
A judicialização dos conflitos de trabalho é perigosa. A ideia de que a Justiça é uma instância de poder neutra é uma ilusão política inocente. O poder na sociedade em que vivemos, seja no executivo, no legislativo ou no judiciário obedece a uma disciplina de classe que não favorece, ao contrário, discrimina quem vive do trabalho assalariado. Educação é um serviço caro. Demora décadas para formar professores, e para estimulá-los a manterem-se atualizados. Os capitalistas não querem aumentar a carga fiscal, porque interpretam que impostos são um aumento de custos. Querem vantagens comparativas para poder concorrer nos negócios contra as empresas que rivalizam com suas companhias pelo domínio do mercado. Os tribunais não merecem confiança alguma.
- Qualidade do ensino não presta e a primeira responsabilidade é dos professores.
Os professores não são responsáveis pelo sucateamento da educação pública, são vítimas. Para ser justo, se a decadência da escola pública não é maior, é porque os professores resistem na sua defesa. Não será possível elevar a qualidade de ensino castigando os professores, mas valorizando-os e respeitando o seu papel de sujeito no processo educacional.
- Greves de professores são um mau exemplo, ensinam a indisciplina e o desrespeito à ordem.
Greves de professores não são mau exemplo. Ao contrário, são um bom exemplo para os estudantes aprenderem a defenderem seus direitos. Aprenderem que não vale tudo. Não vale o cada um por si, todos contra todos. Greves transformam as pessoas para melhor porque ensinam o valor da solidariedade, da fraternidade, da esperança, e da coragem. Valores muito mais elevados que a mesquinhez, o egoísmo, a acomodação e a covardia.
Notas:
[1] http://www.educacao.sp.gov.br/censo-escolar. Consulta em 09/04/2015
Texto publicado originalmente no Blog Convergência: <http://blogconvergencia.org/?p=4283>